
A reforma administrativa, em discussão no Congresso Nacional por meio da PEC 38/2025, busca redesenhar o funcionalismo público no Estado brasileiro. A proposta foi construída a partir de um grupo de trabalho coordenado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) e pretende modernizar a máquina pública, fortalecer a gestão por resultados e reduzir privilégios. O texto aguarda despacho do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB) e tem o apoio declarado do parlamentar para seguir à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
A PEC altera regras constitucionais e cria novas formas de vínculo entre o Estado e os servidores, além de introduzir avaliações de desempenho e ampliar a digitalização dos serviços públicos. O texto propõe transformar a eficiência e a transparência em pilares do serviço público, com metas, incentivos e mecanismos de controle mais próximos da administração privada.
Para o advogado Jonas Hipólito, especialista em direito administrativo, a proposta "busca adequar o Estado a um modelo mais flexível e orientado por resultados", sem romper totalmente com as bases constitucionais da administração pública. Ele explica que a reforma "mantém o concurso como regra de ingresso e preserva princípios como legalidade e impessoalidade, mas flexibiliza vínculos funcionais e cria formas de contratação por tempo indeterminado ou temporário".
A professora Alketa Peci, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), define a reforma como "um processo deliberado e abrangente de mudança no setor público" e destaca que o texto aborda mais de 70 propostas. Segundo ela, o Brasil precisa menos de "novas leis" e mais de capacidade gerencial. "Faltam bons sistemas de metas e monitoramento, dados confiáveis, interoperabilidade digital, formação continuada e liderança de linha com autonomia e responsabilidade", afirma a acadêmica.
Peci reconhece a importância de preservar a estabilidade em carreiras estratégicas, mas admite que é possível repensar vínculos em funções instrumentais. "Mudanças prudentes tendem a preservar a estabilidade onde a independência é vital, ao mesmo tempo em que criam trilhas de desempenho e mobilidade para evitar o enfraquecimento do serviço".
A proposta, contudo, encontra resistência entre servidores e entidades. O Sindicato dos Servidores Públicos Civis da Administração Direta, Autarquias, Fundações e Tribunal de Contas do Distrito Federal (Sindireta-DF) avalia que o texto representa um 'grave risco' ao serviço público e à própria estrutura do Estado brasileiro". Segundo o presidente do sindicato, Ibrahim Yusef, "ela não combate privilégios nem corrige distorções, ao contrário, fragiliza carreiras essenciais, abre brechas para indicações políticas e ameaça a continuidade de políticas públicas".
O sindicato afirma que a justificativa de tornar o Estado mais eficiente não se sustenta no formato atual da PEC. "Modernizar não é desmontar o serviço público. Eficiência não se alcança com insegurança ou desmotivação, mas com valorização e boas condições de trabalho", diz Yusef. Ele também alerta para os impactos diretos em áreas como saúde, educação e assistência social, que poderiam ser as mais prejudicadas.
Para a líder da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, a PEC 38/2025 representa "um risco de desmonte do Estado e de privatização de serviços essenciais". A entidade critica o fato de a proposta centralizar na União a definição de regras para administração de pessoal em todas as esferas federativas, o que, segundo ela, "retira autonomia de estados e municípios e impõe um modelo padronizado que ignora as desigualdades regionais".
Fattorelli também relaciona a reforma à manutenção de uma lógica financeira voltada ao pagamento da dívida pública. "Tudo que se economizará com o desmonte que a PEC pretende será destinado ao Sistema da Dívida. O setor que mais lucra com a redução da estrutura estatal é o setor financeiro", sustenta Maria Lúcia. Para ela, o discurso da eficiência "tenta imprimir no serviço público a lógica de mercado, esquecendo-se das funções sociais do Estado e da garantia de direitos universais".
Já o advogado Jonas Hipólito destaca que a proposta quebra o regime jurídico único e cria múltiplos vínculos instáveis. Para ele, "essa fragmentação exige salvaguardas para não comprometer a continuidade do serviço e a neutralidade técnica".
Ele reconhece que a avaliação de desempenho é constitucional, mas alerta para o risco de perseguição política. "O desafio é operacionalizar critérios objetivos, metas claras e mecanismos de revisão. Modelos subjetivos podem gerar retaliações e insegurança institucional."
A oposição endureceu o tom contra a PEC 38/2025 e afirma que o texto não moderniza o Estado nem combate privilégios, mas representa um “ataque direto à espinha dorsal do serviço público”. Para o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), a proposta amplia a precarização, flexibiliza vínculos e abre espaço para perseguição política.
“Não tem nada de combate a privilégio. Isso é um ataque à base do serviço público brasileiro, ampliando precarização e contratos temporários. E como é que o relator fala em combater privilégios se ele votou a favor da PEC da blindagem? Isso é um contrassenso completo”, critica o parlamentar.
Um dos pontos mais sensíveis, segundo ele, é a mudança no instituto da estabilidade. Glauber afirma que o novo modelo cria um ambiente de intimidação dentro da máquina pública. “Quando você atinge diretamente a estabilidade do servidor, você favorece a perseguição. Cria um clima de medo, em que só permanece quem faz o jogo do prefeito ou do governador de plantão. Esse é um risco seríssimo com a reforma”, diz.
O deputado também vê no texto uma porta aberta para privatizações e para o sucateamento de áreas essenciais. “O que esse texto quer fazer é precarização para facilitar, depois, a privatização. A flexibilização dos contratos temporários mostra exatamente o enfraquecimento que querem impor ao serviço público brasileiro”, afirma.
Para Glauber, não há modernização possível sem valorização das carreiras e sem o cumprimento da legislação existente. “Falar em modernização com uma proposta que atende aos interesses de mercado e sem qualquer discussão séria com os trabalhadores é tentar enganar as pessoas. Muitos municípios sequer cumprem o piso da educação, muitos estados não respeitam planos de cargos e salários. Chamam isso de futuro? Isso parece muito mais com o passado retrógrado”, afirma.
O parlamentar defende que o governo federal assuma publicamente posição contrária ao texto. “O governo tem que se posicionar de forma direta e objetiva, dizendo que é contra a aprovação dessa PEC. Essa é a expectativa do conjunto dos servidores públicos brasileiros”, declara.
Ele afirma que a mobilização dos servidores tem surtido efeito e deve continuar. “A mobilização em Brasília, nos aeroportos, nos estados e nas cidades foi muito forte. Tanto é que deputados que assinaram a tramitação da PEC já pediram a retirada da assinatura. Nosso esforço agora é impedir que essa proposta seja votada em 2025”, reforça Glauber.
O Correio entrou em contato com o Ministério da Gestão e Inovação, que informou que não comentará o tema neste momento. O Palácio do Planalto e o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), relator do Grupo Técnico que elaborou os estudos e propôs a PEC, não responderam até o fechamento desta edição. A reportagem também procurou o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, que já se manifestou publicamente a favor do projeto, mas não obteve retorno.