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Representatividade: luta antirracismo está presente no sistema de saúde

Da formação universitária à atenção básica, profissionais negros inspiram mudanças e apontam caminhos para um sistema mais humano, diverso e antirracista

João Araújo
Por: João Araújo Fonte: Correio Braziliense
16/11/2025 às 17h30
Representatividade: luta antirracismo está presente no sistema de saúde

No mês da Consciência Negra, a presença de profissionais negros na área da saúde ganha reconhecimento com trajetórias que resistem, avançam e ocupam espaços do cuidado e da pesquisa. Nos corredores dos hospitais, consultórios e laboratórios, essa representatividade, ainda em construção, carrega histórias que começam muito antes do jaleco e do diploma em mãos: elas transformam o próprio sistema de saúde. No Distrito Federal, dados da Secretaria de Saúde (SES-DF) mostram que 2.225 profissionais se autodeclaram pretos e 13.262, pardos — são 15.487 pessoas negras atuando diariamente na rede pública.

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A fisioterapeuta neonatal Janayna Bispo, chefe da Unidade de Terapia Intensiva Neonatal do Hospital Universitário de Brasília (HUB-Unb/Ebserh) e com 18 anos de experiência na área, é um dos nomes que vêm ocupando espaços de liderança na saúde pública do DF. Ela conta que sua trajetória foi construída com dedicação e resistência, especialmente por atuar em um campo marcado pela falta de representatividade negra. "Sempre recebem com muita surpresa o fato de eu ser a chefe da UTI Neonatal", destaca.

Janayna lembra que ingressou no HUB por concurso público, em 2014, por meio da política de cotas raciais, e desde então construiu sua trajetória em meio a diferentes desafios. Entre esses obstáculos, ela destaca o peso da racialidade em um ambiente no qual a presença de profissionais negros ainda é rara. "A permanência na área também exige resiliência: além das demandas próprias da saúde, existe o peso das desigualdades estruturais que atravessam nossas trajetórias", afirma. 

Para ela, o racismo institucional se manifesta até mesmo contra os pacientes. "Impacta na forma como pacientes negros são atendidos, avaliados e acolhidos. É perceber que suas dores são menos valorizadas e que suas queixas são interpretadas como 'exagero'". Um dos casos que mais marcaram sua trajetória foi o relato de uma mãe que se emocionou ao ser atendida por ela. "Ela disse emocionada que era a primeira vez que ela 'se sentia vista' dentro de uma UTI. Ela compartilhou comigo dúvidas e medos que nunca havia dito a outros profissionais. A partir dali, nossa relação mudou completamente, e a evolução do bebê também ganhou outra fluidez", lembra.

"Minha missão é abrir caminhos e perpetuar o conhecimento para uma formação em saúde antirracista", afirma. "Hoje, juntamente com um grupo de trabalho do HUB, organizo o primeiro evento em alusão à Consciência Negra no HuB, 'Raízes que curam', onde buscamos a sensibilização e letramento dos profissionais de saúde, alunos e residentes", completa.

Inspiração

Para a neurologista Júlia Carolina Ribeiro, do Hospital DF Star, da Rede D'Or, a trajetória na medicina sempre exigiu entrega e resiliência. "Sempre precisei oferecer muito mais para estar no mesmo nível de competitividade. Também sou mulher, o que não deixa as coisas mais fáceis. Mas as oportunidades vieram com escolhas de projetos mais alinhados com minha filosofia em empresas com política interna de inclusão", observa.

Ela conta que é motivo de inspiração por quem a encontra pelo caminho. "Já fui surpreendida com olhares generosos de jovens que enxergam em mim a possibilidade de ter uma carreira de excelência que faça a diferença na vida dos pacientes. Os meus desafios não me definem, mas sim a maneira como eu tenho lidado com eles. O racismo é uma desculpa torta para não ser humano; tudo que vem deste contexto é fruto de pouca instrução e intolerância".

Júlia destaca ainda como histórias de pacientes reforçaram seu compromisso profissional e pessoal. "Uma senhora centenária me falou que nunca tinha sido atendida por uma médica (negra) como ela. Tenho orgulho de estar em um ambiente de trabalho onde a cor da minha pele não limita minha progressão de carreira".

Intolerância

Eudes Judith Félix, técnica de enfermagem da Unidade Básica de Saúde 20 de Planaltina, atua há 20 anos na SES-DF, e lembra que sua trajetória começou em meio a barreiras estruturais. "Trabalhar com a população é sempre desafiador. O racismo é crônico, e as pessoas ainda precisam aprender sobre respeito e empatia. Muitas vezes somos agredidos verbalmente, e alguns se aproveitam do fato de sermos profissionais negros, com cabelo afro, usando termos pejorativos em discussões. Enfrentamos isso no trabalho e na vida".

No entanto, ela afirma que a educação sempre foi a ferramenta para transformar sua realidade. "Tive que me dedicar muito mais para mostrar meu conhecimento, minha inteligência e reafirmar que a pessoa negra tem potencial e capacidade. Ainda há poucas mulheres negras em espaços de poder e no ambiente profissional. Vejo que muitos pacientes negros se sentem mais confortáveis comigo. Chegam à UBS já me procurando, porque se sentem acolhidos", sublinha.

Educação inclusiva

Em processo de formação, o estudante de enfermagem da Universidade de Brasília (UnB), na Faculdade de Ciências e Tecnologias em Saúde (FCTS), campus Ceilândia, João Victor Moraes, 22 anos, morador da região, conta que sua trajetória na universidade é marcada por persistência e representatividade. Identificado desde cedo com a área da saúde, ele enxerga a presença de estudantes negros na universidade como resultado de políticas públicas que começam a mostrar efeitos concretos.

"Na FCTS, o negro não precisa transpor a barreira que lá fora, bem sabemos, muitas vezes temos que lidar. Eu espero que jovens negros e negras vejam a minha presença na área da saúde como uma esperança… Se eu consegui, eles também conseguem!".

Comprometido em contribuir para um sistema de saúde mais justo, João Victor relaciona sua missão pessoal ao combate ao racismo institucional, especialmente na assistência a mulheres negras e indígenas, as mais afetadas pela mortalidade materna no país. Segundo ele, o Dia da Consciência Negra simboliza não apenas resistência, mas também "representa nossas vitórias, não de forma isolada, mas como uma corrente, na qual se segura a mão do outro que não venceu ainda para que ele, junto contigo, possa alcançá-la".