O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu, ontem, do presidente da Argentina, Javier Milei, a presidência do Mercosul. Adversários, Lula e Milei trocaram cumprimentos protocolares na Cúpula de Estado do bloco, realizada em Buenos Aires, entre quarta-feira e ontem. Foi a primeira visita do petista ao país desde a eleição do líder de extrema-direita.
Nos discursos, a divergência entre os dois sobre o Mercosul ficou evidente: o argentino voltou a ameaçar sair do bloco e a criticar a Tarifa Externa Comum (TEC). Por sua vez, o brasileiro defendeu que o mecanismo comercial é uma proteção em um mundo com guerras tarifárias e corrosão dos organismos internacionais.
"Quando o mundo se mostra instável e ameaçador, é natural buscar refúgio onde nos sentimos seguros. Para o Brasil, o Mercosul é esse lugar. Ao longo de mais de três décadas, erguemos uma casa com bases sólidas, capaz de resistir à força das intempéries", discursou Lula. "Estar no Mercosul nos protege. Nossa Tarifa Externa Comum nos blinda contra guerras comerciais alheias. Nossa robustez institucional nos credencia perante o mundo como parceiros confiáveis", acrescentou.
Por sua vez, o líder argentino argumentou que o Mercosul, criado originalmente para integrar as economias da região, acabou prejudicando muitos cidadãos e privilegiando setores específicos. "A barreira que levantamos para nos proteger comercialmente acabou nos tirando do comércio e da recorrência global e acabou castigando nossas populações com serviços e bens piores e com preços piores".
Outro ponto que fez parte do discurso de Lula foi a defesa de que o bloco estreite a cooperação com os países asiáticos. "É hora de o Mercosul olhar para a Ásia, centro dinâmico da economia mundial. Nossa participação nas cadeias globais de valor se beneficiará de maior aproximação com Japão, China, Coreia, Índia, Vietnã e Indonésia", discursou o presidente.
O mercado asiático vem se mostrando uma opção mais atraente e estável, principalmente após o tarifaço imposto pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O Mercosul possui apenas um acordo na região, com Singapura. O tratado foi firmado em dezembro de 2023, e está em fase de consolidação. Lula também já deixou claro que quer firmar um acordo com o Japão, defendendo a tese durante uma visita de Estado a Tóquio, em março.
O chefe do Executivo destacou o projeto de infraestrutura encabeçado pelo Brasil, que visa ligar 10 países da América do Sul por meio de rodovias, portos, aeroportos, hidrovias, e linhas de transmissão — as Rotas da Integração Sul-Americana. Ao todo, serão cinco ligando todas as regiões do continente. "A conclusão da Rota Bioceânica, que conecta Brasil, Paraguai, Argentina e Chile, reduzirá em até duas semanas o tempo de viagem até a Ásia", enfatizou Lula. O projeto é chefiado pelo Ministério do Planejamento e Orçamento, e a titular da pasta, Simone Tebet, sentou ao lado de Lula durante a Cúpula.
Lula também demonstrou otimismo com as negociações em curso e reforçou a necessidade de reposicionar o bloco diante das transformações da economia mundial. O presidente celebrou a conclusão das tratativas com as Associações Europeias de Livre Comércio (Efta) e declarou confiança na implementação do acordo entre Mercosul e União Europeia até o fim deste ano, o que, segundo ele, criará "uma das maiores áreas de livre comércio do mundo". O presidente argentino concordou.
Segurança
O tema do combate às organizações criminosas também ganhou destaque durante a reunião. Milei, que discursou logo antes de Lula, comentou que a atividade é um "câncer" na região, e destacou que as facções brasileiras PCC e CV se estenderam por todo o Mercosul". Além disso, cobrou que Lula continue fortalecendo os mecanismos do bloco. "Eu termino essa presidência deixando o compromisso para a próxima presidência, a cargo do Brasil, para que continuemos lutando no Mercosul e trazendo as ferramentas necessárias para combater o crime transnacional organizado", disse Milei. A Argentina propôs a criação de uma agência do bloco dedicada ao combate ao crime.
O presidente brasileiro, por sua vez, em seu discurso, argumentou que os países sul-americanos precisam investir em inteligência, controlar os fluxos de armas e combater os crimes financeiros que custeiam a operação das organizações. "Grupos criminosos colocam em xeque a autoridade do Estado, disseminando violência, corrupção e destruição ambiental. Não venceremos essas verdadeiras multinacionais do crime sem atuar de forma coordenada", falou Lula durante a Cúpula.
Ele citou como exemplo de cooperação o Comando Tripartite da Tríplice Fronteira, organização policial formada por Brasil, Argentina e Paraguai para combater crimes financeiros e o tráfico na fronteira. O acordo que forma o Comando foi renovado em maio deste ano, assinado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Lula mencionou ainda a Cooperação Policial Internacional da Amazônia, inaugurada em junho pela Polícia Federal, em Manaus, integrada pelos nove países que possuem partes da Floresta Amazônia em seu território. "São iniciativas que se complementam e que precisam dialogar entre si para ganhar escala sul-americana. O Brasil vai mobilizar o Mercosul ampliado para aprimorar e aprofundar essa colaboração", enfatizou Lula.
Ao final da Cúpula, o cargo foi oficialmente transferido para o Brasil, e os dois presidentes se abraçaram. Em breve fala, Lula agradeceu o trabalho da presidência e fez alguns acenos ao país vizinho. Ele prometeu que estudará "com afinco" a ideia de criação de uma agência contra o crime, e disse que dará continuidade à Declaração sobre Integração e Segurança Energética do bloco, discutida desde 2023. O petista também condenou a exploração de minérios nas Ilhas Malvinas pelo Reino Unido. A nação europeia controla o território, que fica na costa argentina e é reivindicado pelo país sul-americano. "Como disse na reunião do Foro Celac-China, em Pequim, cabe somente a nós mesmos decidir se seremos grandes ou pequenos. Temos tudo para desempenhar um grande papel na construção de um mundo mais justo e sustentável", frisou Lula.
Transição energética
Lula também destacou em seu discurso o papel estratégico da América do Sul no enfrentamento das mudanças climáticas e na promoção da transição energética global. Segundo o presidente, o bloco regional deve assumir protagonismo diante dos desafios impostos pelo aquecimento global e se tornar referência em desenvolvimento sustentável.
"As consequências do aquecimento global já se fazem sentir no Cone Sul. Estiagens e enchentes vêm causando perdas humanas, destruição de infraestrutura e quebras de safra", alertou Lula. Ele criticou o negacionismo climático, classificando-o como uma "falácia exposta pela realidade que avança mais rápido do que o Acordo de Paris".